Conto : Delírio 22/12/2012

Quando minha vó morreu, não fui no enterro. Não gosto de coisa de última hora, sem falar que eu não via a velha há uns dois meses, seria uma puta hipocrisia aparecer lá com cara de choro assim do nada, então não fui. Minha família virou a cara comigo porque nossa que desrespeito! Desrespeito foi o que eu sofri a vida toda e olha que nem virei a cara com ninguém. Fiquei até meio recalcado, mas fingi não ligar, sabe? Tenho coisas mais importantes e urgentes na cabeça. A faculdade, por exemplo. A faculdade é uma coisa bem urgente. Salvar minha faculdade é uma coisa bem urgente.
Meu bolso também. Faz mais de quatro semanas que fiquei sem emprego e ainda não achei nada de novo. Eu dava aula de francês. A minha família, a mesma que virou a cara comigo agora, dizia que era língua fresca, língua de bicha, mas eu não ligava não. Pode ser de bicha, aí não sei, mas é bonita pra caralho, gosto muito. Aprendi um pouco sozinho no colegial, paguei um professor particular na faculdade, me dediquei mais a isso do que ao curso em si. Peguei jeito, fui trabalhar. Me demitiram por vagabundagem, acho, mas não disseram o motivo. Não gosto de trabalhar, admito, trabalhava por precisão, mas acho que ficar faltando não passa a melhor das imagens.
A Vanessa diz que é questão de ter paciência, que logo eu arrumo coisa nova, mas que é pra eu tomar juízo. Vanessa é minha namorada, tem minha idade, mais ou menos, ou seja, uns vinte anos. É preta. Não é morena não, é preta mesmo. Não gosto dessa frescura de eufemismo: branco é branco, preto é preto. Chamar de negra, de morena parece medo de ser racista. Racismo velado, escondido. A Vanessa é preta, tem uns peitões, umas coxas grandonas também. Gosto dela.
Olha que nem quando eu arrumei uma namorada minha família parou de insinuar que eu era viado. Não perto de mim, é tudo um bando de covarde, mas sei que não pararam não. Mas eu não ligo, dessa vez não ligo de verdade. Já tive amigos viados e todos eles me asseguraram de que eu não tenho pinta nem nada, então sigo tranquilo.
Minha mãe me ligou perguntando por que eu não ia no enterro da vó, que era a mãe dela. Ela tava chorando, eu expliquei. Não sei se ela entendeu, mas tentei ter o máximo de tato. Acho que não sou muito bom nisso.
É sua vó filho.
Eu sei mãe. Eu conhecia ela, sabe. Mas tenho muita coisa pra fazer.
O que é mais importante que família?
Faculdade mãe, faculdade.
E se eu morrer? Cê não vem também?
Tá louca mãe? Vira a boca pra lá.
Cê não vem? Hein?
Claro que vou mãe. Eu hein.
Silêncio.
Reza pra vó filho. Reza bastante.
Tá bom mãe.
Promete?
Prometo.
Tchau, fica com deus.
Amém mãe, amém.
Acho que dá pra ver que eu não sou o filho mais dedicado do mundo, mas meus pais tão longe de ter o direito de reclamar. Eles reclamam, mas não deveriam. Nunca reprovei de ano, nunca fui de drogas. Pra falar a verdade, até experimentei algumas coisas, tipo maconha, cocaína, mas não gostei não. Nem de bebida eu gosto direito. Bebo de vez em nunca quando tô muito precisado e olhe lá.
Mas precisado do quê? A Vanessa me perguntou quando disse isso pra ela.
De beber ué.
Mas tem precisão agora?
Tem sim ué, sempre teve. Tem gente que precisa mais, tem gente que precisa menos. Meu tio por exemplo precisava todo dia, quase toda hora.
Risos. Ela riu e me beijou Bastante, mas não sei se somos só nós dois ou se é assim com todo mundo. Não sei o que seria bastante. Ela é minha primeira namorada, então é difícil dizer. Eu sou o segundo dela. Não perguntei do outro relacionamento por motivos óbvios, nem ela nunca me contou.
Teve uma noite em que a gente tava deitado na cama, naquela paz que fica depois do Jantar, entrelaçando as mãos, e ela me perguntou e se ela morresse também. Também? É, tipo a sua vó. Que pergunta é essa Vanessa? Tás louca é? Eu perguntei rindo, mas preocupado de verdade. Falar de morte nunca é legal. Minha mãe também tinha falado de morte. Eu sou bem esclarecido pra morte, pelo menos mais do que uma galera por aí, mas ainda me sobe um frio na espinha ao pensar nessas coisas. Mas ela só disse Nada não e se encolheu mais nos meus braços, suspirando fundo e caindo no sono. Rapaz, não entendo mulher. Não entendi naquele dia e não entendo até hoje. Nem mãe. Mãe é uma classe especial, mas também não entendo.
Então eu acordei ontem sem entender mulher também, como acordo todo dia sem entender mulher. Levantei, tomei banho, tudo certinho. Banho eu tomo dois por dia, ainda mais no calor infernal dessa cidade. Sou preguiçoso, sei disso, mas não sou porco não. Aliás, às vezes eu paro e penso e concluo que, desses apelidos de animais, desses ruins, porco é o que mais é certo. Porco é porco, ué. Cachorro não é cachorro, burro não é burro, mas porco é porco. Cavalo também pode dar certo, mas só se for falar de pinto, mas aí acho que usam mais jegue.
Acabo pensando muito nesse tipo de coisa quando acordo, fico meio grogue, meio boboca, fico pensando em coisa aleatória, viajando mesmo. Quem precisa de drogas assim? Sou convicto de que qualquer dia vou pensar na cura do câncer assim nesse estado, mas que vou esquecer depois do primeiro gole de café figurado.
Escovando os dentes pensei no que minha mãe tinha dito e que eu não tinha rezado pra vó. Não sou muito de rezar, mas até que eu sei um pouquinho, nem custa nada. Pensei em passar na igreja depois, rezar um pouquinho lá pra compensar não ter rezado antes de dormir. Não sei se compensa de verdade, mas é bom pensar que sim. Não sei nem se deus existe né, mas é bom pensar que sim também. É reconfortante, quase. Cheguei na cozinha e meu celular tocou pouco depois de eu dar o primeiro gole d’água. Eu tinha deixado ele lá carregando no balcão. Era final de semana, então nem de alarme eu precisava. Era uma e pouco da tarde, uma e pouquinho.
Oi Vanessa.
Oi lindo, "cê" vem hoje né?
Se der tempo eu vou sim. Que horas vai ser?
Como assim se der tempo? É lá pelas seis…
Eu tava pensando em sair pra deixar uns currículos, queria passar na igreja também, mas não sei não.
Igreja? Vai fazer o que na igreja? Cê nem sabe rezar.
Sei sim, ou. Sei Pai Nosso e Ave-maria, já tá bom. Mais que bom.
Ela não gosta quando eu falo muito em religião. Ela diz que deus tá nos toques, nas ações, tá no sexo, no amor, na esmola que a gente dá pro pessoal passando fome, diz que deus tá por aí, em todo lugar, mas menos na Igreja. No culto também não.
Tá, ela diz meio contrariada. E vai fazer o que lá?
Minha mãe pediu pra eu rezar um pouco pra minha vó. Acho que eu vou. Tô me sentindo meio culpado por não ter ido no enterro.
Mas cê nem era apegado a ela nem nada, cara.
Eu sei, mas sei lá. Morte não é uma coisa bacana.
Tá. Faz o que cê quiser. Mas tenta estar aqui às seis.
Eu gosto da Vanessa porque ela entende a gente quando a gente fala as coisas. Tem namorada que faz ceninha, mas a Vanessa não. Quando ela diz “tá. faz o que cê quiser.” ela quer dizer “tá. faz o que cê quiser.”, mas assim, sem ressentimento nem nada. Minha mãe fala isso pro meu pai quando tá magoada com ele, mas a Vanessa não, ela fala de verdade. Dessa vez ela queria que eu fosse na festa surpresa que iam dar pro pai dela, mas eu sabia que se eu não fosse estaria tudo bem. Bom comigo, bom sem migo. Isso é legal, né.
Almocei num restaurante perto de casa. Tava morrendo de preguiça de cozinhar e não ando bem numa situação tão feia assim pra não poder comer coisa boa. O lugar é um daqueles self-service que todo mundo da faculdade curte ir pra não ter que cozinhar, então nem é tão caro assim. Comi tudo em meia hora, talvez menos, e fui entregar currículo. Tinha imprimido uns trinta no dia anterior, só pro caso de precisar, nunca se sabe. Acabou que só fui em umas cinco escolas de línguas e em umas duas lojas, todas com aquele jeito de “se a gente precisar, a gente te procura” que todo mundo sabe que é furada. Acho que a pior parte de procurar um emprego é essa: você precisa ter experiência, mas ninguém quer te dar experiência. Já teve gente que me disse que não pega novato porque quer professor e não aluno. Só pode ser piada.
Acho que eram umas quatro horas quando eu cheguei na igreja, suando do sol quente. Pelei pra subir a escadaria grandona. Sou magro mas sou meio sedentário, não sirvo pra essas coisas. Lá dentro tinha umas duas velhinhas rezando, como sempre tem em igreja à tarde, velhinha rezando, velhinha só reza. Reza e reclama do ar-condicionado do ônibus. O altar era decorado com umas quatro imagens de santo, incluindo uma do santo padroeiro, um santo meio hipster que eu nunca lembro do o nome. Fiz o sinal-da-cruz pra entrar, por costume mesmo, e me dirigi pra um dos bancos do fundo.
Eu tava no começo da Ave-maria quando uma terceira velhinha entrou e veio bem pro meu lado. O porquê eu não soube. O resto da igreja tava bem vazio, mas ela veio e ajoelhou bem do meu lado, cabeça baixa, uma espécie de xale cobrindo o rosto, véu, sei lá. Cheguei um pouco pro lado pra me afastar da figura e ela pareceu não se importar. Bom, bom. Continuei a reza.
Devia fazer uns cinco anos que eu não pisava numa igreja, tava desacostumado a rezar. O joelho até doeu mais cedo. Confundi Ave-maria com Santa Maria e Salve Rainha umas três vezes até conseguir fazer mais ou menos certo, mas consegui, devo ter conseguido. Depois fiz os pedidos que a gente faz quando alguém morre. Pra que deus abençoe a alma da pessoa e que ela seja feliz no céu e coisas assim. Aproveitei e pedi pra ela ter uma outra vida feliz, porque vai que os espíritas estão certos ou os budistas, sei lá. Ia falar até em karma, mas achei exagero. Fui lá fazer o último sinal da cruz quando eu vi que a velhinha do meu lado tava de pé.
Ela não tava fazendo nada não, só tava de pé, aquele xale bizarramente cobrindo todo o rosto dela. Acho que tava olhando meio pra cima, mas não tenho certeza. Por fim, ela se virou e veio na minha direção. Eu achando tudo muito estranho, claro, mas fiquei parado.
Já do meu lado, ela se abaixou e me deu um beijo na cabeça, bem no topo mesmo, o xale e meus cabelos se interpondo entre a boca dela e o couro cabeludo em si, mas já deu pra sentir que ela era bem fria. Acho que ela disse alguma coisa, mas não tenho certeza, foi um meio Obrigada, meio Se cuida filho. Acho que tinha filho no meio.
Na hora eu não pensei direito, mas fiquei paralisado do mesmo jeito. Assisti a velha sair da igreja eu com um frio na espinha, meio com medo meio com sei lá o quê. Fui aos poucos juntando as peças e não me senti melhor. No caminho pra casa da Vanessa eu quase fui atropelado umas três vezes, não sei se por falta de atenção ou outra coisa. Quando cheguei às sete no aniversário ela me perguntou se eu tinha visto algum fantasma.
Respondi que não era nada não, mas passei mal no meio da festa. Me senti febril, um pouco enjoado. Pedi desculpas, beijei a Vanessa e voltei pra casa. Deitei. Dormi e sonhei umas coisas estranhas. Não lembro direito e olha que eu acordei agora há pouco, foram umas quinze horas de sono. Eu tava morto, acho. A Vanessa também tava morta, minha mãe tava morta, minha vó tá morta ainda, mas tava também no sonho. Acho que tava todo mundo morto, mas todo mundo meio vivo também. Não sei explicar não. Acordei com o coração acelerado, sem o sono de sempre. Liguei pra Vanessa e conversamos um pouco. Foi bom ouvir a voz da minha namorada sem o tom fantasmagórico da minha pouca lembrança do sonho.Demorou para eu perceber que aquela velhinha da igreja era a minha vó e que o beijo serviu para me mostrar a  vingança que ela iria aplicar sobre mim.

Escrevi isso aqui logo depois do telefonema. Por enquanto, tudo normal.


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Conto : Delírio 22/12/2012 Unknown Rating: 5 quarta-feira, 30 de outubro de 2013

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